Sobre as visitas aos programas de redução de riscos em Gaia e em Lisboa: GiruGaia para administração da metadona em substituição à heroína e na carretinha com sala de consumo vigiado de drogas injetáveis.

Quando soube que viria à Barcelona logo pensei em aproveita a vinda a Europa - e sabemos bem que se trata de uma viagem cara que quase nenhum de nós tem acesso - a conhecer alguns projetos de redução de danos. 
Sabia da lei de discriminalização do uso de drogas em Portugal e das estatísticas promissoras de redução importante de mortes por overdose de heroína.

A primeira reação que tive foi mandar mensagem para pessoas que trabalham com redução de danos em São Paulo e que eu sabia que tinham tido experiências em conhecer estratégias europeias de RD e, para minha surpresa, não tive nenhum apoio para chegar aos contatos que consegui.
Prefiro acreditar que se tratou de excesso de demandas do cotidiano que impediram as pessoas de me apoiarem que um excesso de vaidade de algumas pessoas da área que se autodenominam experts em drogas e redução de danos.
Eu, de fato, acredito na necessidade de ampliarmos as informações que nos ajudam a sermos mais autônomos em nossas práticas de cuidado e não as centralizar. 

Sigamos.

Tenho que agradecer imensamente a Joana Francisca Canêdo, profissional das Metzineres em Barcelona, que é portuguesa e trabalhou aqui com redução de riscos, pela mobilização em me colocar em contato com diferentes serviços, entre eles o do GIRUGAIA que atua com substituição de metadona às pessoas que fazem uso de heroína, bem como na detecção e no acompanhamento de algumas doenças infectocontagiosas, como TB, HIV e Hepatite C.

Tive a oportunidade de ir com a professora Ana Karenina Arraes da UFRN que está iniciando seu pós-doc no Porto e gentilmente me recebeu na cidade. Ana, além de estar presente na minha banca de qualificação e, portanto, conhece meu trabalho, tem uma discussão importante sobre pessoas em situação de rua e estar com ela me ajudou muito a pensar as semelhanças, as diferenças e as potências ao compararmos com os nossos serviços.

Comparações são sempre muito delicadas pois partem de terrenos sócio-históricos muito distintos, mas nos ajuda a fazer um exercício de desprendimento da nossa realidade e isso é importante para repensarmos - pra além do que funciona ou não - nossas práticas. Ademais, estou de passagem e minha visão é relativa e recordada.

O GiruGaia faz parte de um projeto da organização social chamada APDES (Agência Piaget para o desenvolvimento) que fica na região de Gaia (do outro lado do Rio em relação ao Porto). 

Para conhecer a associação: https://apdes.pt/pt/home/ 

O projeto existe desde 2003, após a sanção da lei de drogas em 2001 que descriminaliza o consumo e prevê a redução de riscos e minimização de danos, após alta incidência de mortes por uso de heroína. 

Atenção: é importante dizer que descriminalizar e despenalizar são aspectos diferentes. De acordo com a SICAD (Secretaria de Portugal sobre políticas sobre drogas e que está ligada ao Ministério da Saúde E NÃO DA JUSTIÇA, COMO O NOSSO). 

Atenção aqui ❗ por que essa discussão me parece fundamental: ao descriminalizar o uso, ainda que não despenalização e tampouco legalizado - que seria o melhor dos cenários, na minha opinião - permitiu com que esses serviços pudessem existir sem resistência massiva da sociedade. 

Quando a carretinha da GiruGaia pára na praça (e pudemos acompanhar uma primeira parada) no mesmo horário todos os dias (para criar cultura) as pessoas que fazem o tratamento com metadona se aproximam, recebem a metadona e vão embora: simples assim.

Obviamente há um controle das pessoas que participam do programa mas, se elas querem iniciar o tratamento naquele mesmo dia, as pessoas que estão na van (enfermeiro, assistente social e um par - que é um profissional educador social que já passou pela situação de uso  ou ainda passa e também está fazendo o tratamento - ) garantem o acesso NA MESMA HORA. 

Ou seja: fazem uma anamnese e a pessoa já começa a fazer o consumo da dose mínima de metadona até começar a fazer um acompanhamento de saúde mais sistemático.

Vejam. 
Nesse sentido, achei fundamental a estratégia tentar inserir no mesmo momento pois sabemos que o atendimento às pessoas que fazem uso de drogas - em que algumas estão em situação de rua - são muito rotativas e não conseguem estar, muitas vezes, em outro momento para iniciar o tratamento. 

Como me disse a Ana, precisamos, muitas vezes, sermos práticos em nossos serviços e levar à sério o acesso imediato do usuário ao tratamento, sem uma escala de méritos em que a pessoa, ao atingir determinado nível de confiança, pode ou não acessar um serviço.

Esse é um efeito, na minha opinião, da narrativa -  garantida em lei e reforçada no governo Bolsonaro - que criminaliza o usuário: "culpado, sem vergonha, vagabundo até que se prove o contrário".

Esse é um dos aspectos pelos quais a gente não pode cindir o cuidado da luta política e dos movimentos sociais pela autonomia das pessoas.

Bem, é importante dizer que eles também fazem toda a articulação com a rede de assistência social, sobretudo em relação à questão da moradia. Há, de acordo com Teresa, 350 pessoas em situação de rua em Gaia e para eles esse número é alarmante.
Pelo Censo de contagem de população de rua que será divulgado amanhã, há quase 26 mil pessoas (valor subestimado) em situação de rua em São Paulo em uma cidade de 12 milhões de pessoas. Em Gaia há cerca de 187 mil pessoas e 350 em situação de rua. 

Acho importante eles não naturalizarem o fato de ter pessoas vivendo na rua e entenderem que 350 dessas pessoas vivendo nessas condições não é aceitável.

Minha segunda experiência foi no projeto de Consumo Vigiado que funciona na carretinha (uma van) preparada para que as pessoas façam consumo de drogas injetáveis minimizando os riscos e realizando orientações em saúde e de assistências social.

Fonte: arquivo pessoal

Eles param a van em dois pontos da cidade de Lisboa: o que fui conhecer é em um terreno baldio em que algumas pessoas fazem uso, em espaços cobertos, feitos de madeira.

Obviamente a escolha do local foi feita após um processo de territorialização. O serviço funciona a menos de um ano (eles começaram em abril de 2019) e não sem resistências: a lei portuguesa de 2001 prevê as salas de consumo vigiado desde essa data, mas a primeira experiência é essa e ainda funciona em uma van (o que impede o consumo de drogas fumadas, por exemplo)

O trabalho do Consumi Viagiado faz parte de uma série de projetos da associação GAT em parceria com outra associação chamada Médicos do Mundo. Seguem os links de ambas:

Fui muito bem recepcionada por Ângela Leiteestagiária de Psicologia, que me mostrou todos os insumos entregues às pessoas para fazerem uso seguro de drogas injetáveis, como: seringas de diferentes calibres e caricas [recipiente de alumínio] para lacerar e dissolver a heroína e os comprimidos de benzodiazepínicos que, de acordo com a Ângela, tem aumentado muito o consumo por que os comprimidos de benzo podem ser comprados no mercado paralelo a um valor mais baixo que a heroína.

Inclusive há uma carica maior para preparar a injeção de benzo (e nisso reside uma importante imensa: você cria condições de uso seguro para quaisquer que forem as substâncias utilizadas, sem julgamento). Há também papel alumínio para quem quiser fazer de outro modo e também cachimbos para quem quiser usar droga fumada fora desse espaço.
Fonte: google.

Perguntei sobre a qualidade das drogas e se eles fazem testagem e eles disseram que nesse momento, com esse espaço, ainda não. Mas há em Lisboa um serviço que faz isso: a kosmicare - Drug Test que começou no contexto de festas, mas agora já tem um lugar fixo em Lisboa.


Muita informação, mas ainda não acabou... Rsrsrs

😱💜

Na carretinha há uma enfermeira que ajuda nas questões de saúde e também a encontrar uma veia segura, por exemplo, mas não injeta a substância, obviamente.
Há diversas informações, como locais mais seguros para injetar e um acompanhamento das drogas que utilizou naquele dia, doses e locais de aplicação para garantir um uso seguro.

Por fim, duas coisas importantes 

Pergunto se há resistência da população local em relação à carretinha e a resposta, surpreendente foi NÃO.

Fico sem palavras. Angela não sabe me dizer ao certo o porque, mas me conta de um episódio de uma senhora que vai à carretinha para medir a pressão com a enfermeira enquanto aguarda no lado de fora junto com as pessoas que querem fazer uso, esperando outras que estão fazendo terminarem. Uma realidade impensada pra mim nesse momento, em alguma medida. 

A hipótese de Angela é: pela droga não ser criminalizada há quase 20 anos faz com que as pessoas entendam o processo como uma ação de saúde e que poderia acontecer com qualquer pessoa de suas famílias, inclusive.

Aqui o consumo não está tão transversalizado pela questão de classe por que as estruturas sociais são menos desiguais, na minha opinião (claro, se entrarmos na discussão da desigualdade na América Latina e a discussão colonial, vamos muito longe... ainda que seja importante).
O consumo de heroína da década de 1990 na Europa chegou a pessoas de todas as classes sociais. No Brasil o consumo de crack é completamente alocado como um consumo ligado à pobreza e também é racializado. Assim, tanto as políticas públicas (que enrijecem, subordinam, desalojam e burocratizam o acesso dessa população aos serviços) quanto às ações policiais tem seu direcionamento necropolítico: o deixar e fazer morrer da população negra no nosso país extremamente racista e desigual.

Um outro aspecto é que a atenção as pessoas que fazem uso de drogas não está alocada na Saúde Mental. Um pressuposto para despatologizar o consumo de drogas que falarei na próxima postagem quando irei contar da minha visita no projeto Housing first de Lisboa.


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