Como discussão de gênero aparece nas atividades em que participei: no grupo de mulheres da rádio Nikosia e no trabalho de Redução de Danos das Metzineres.
Na minha tese de doutorado tenho assumido uma posição acadêmica interseccional, ou seja: não podemos prescindir das dimensões de gênero, raça e classe - entre outras dimensões que nos constituem enquanto sociedade (como a questão da religião) - de nossas análises.
É fundamental pensar a interseccionalidade em relação ao tema das drogas - que é meu principal objeto de estudo, na sua relação com autonomia -, pela inseparabilidade entre racismo, capitalismo e patriarcado e suas relações de poder sobre a vida das mulheres, entendendo que, nessas relações, as mulheres negras são as mais expostas à opressão e às situações de vulnerabilidade decorrentes desse imbricamento.
As teorias interseccionais têm origem nos estudos feministas de mulheres negras nos Estados Unidos, sobretudo a partir de denúncias de discriminação racial dentro do próprio movimento feminista (branco, de classe média e heteronormativo) (HELENA HIRATA, 2014) na década de 1970 (ANGELA DAVIS, 2016) e propõem evidenciar que “as experiências das mulheres negras não podem ser enquadradas separadamente nas categorias da discriminação racial ou da discriminação de gênero.” (KIMBERLÉ W. CRENSHAW, 2004, p. 8).
Este é o cerne dos estudos feministas negros, considerando que “minimizar uma forma de opressão, apesar de essencial, ainda pode deixá-las oprimidas de outras formas igualmente desumanizadoras” (PATRÍCIA HILL COLLINS, 2016, p. 107) quando se produz análises feministas, sem considerar as questões de raça. A importância nesse tipo de análise reside, sobretudo, pela aposta na interação entre esses múltiplos sistemas interligados de opressão como foco do estudo, ao invés de tentar transpor análises de gênero e de raça às teorias já consolidadas.
Em outras palavras, não se trata de "encaixar" análises feministas em outras matrizes de pensamos. É preciso que criemos uma epistemologia que se conduza interseccional desde seu início.
Esse é o desafio que tenho me proposto quando penso autonomia e minhas experiências aqui também me convidam a pensar: como se dá as questões de gênero na experiência da loucura e nas práticas cotidianos dos espaços. Afinal, em uma dimensão macropolítica, autonomia tem relação com uma vida sem opressão e com garantias materiais para se viver: comida, teto, acesso à cultura, educação e lazer.
Diante de toda essa introdução, conto aqui pra vocês duas experiências: a minha participação tímida no grupo de mulheres da rádio Nikosia e minha ida ao projeto das Metzineres - coletivo que trabalha com redução de danos para mulheres sobrevivendo à violência (achei interessante a ideia de não se trabalhar com o termo "vítimas de violência".
No grupo de mulheres da rádio Nikosia, um primeiro impacto: eu não encontrava de jeito nenhum o espaço de encontro. Andei uns 15 minutos em círculos quando fui resgata por Lúcia, uma das profissionais no projeto, na rua.
As mulheres estavam todas reunidas na parte de trás de um café, muito próximo de onde acontecem as atividades da rádio.
Parece algo muito simples que pode até passar desapercebido, mas não é: o encontro se dá nos espaços de convivência social. Há uma verba destinada para o café que as mulheres tomam e nisso reside a importância de viabilizarmos a circulação na cidade.
Muitas foram as conversas que pudemos trocar: desde a dificuldades para tirar cidadania espanhola (processo que uma das mulheres estava passando), como o elevado valor do aluguel dos apartamentos em Barcelona e como conseguir acessar ao que seria um programa de acesso à moradia social para as pessoas com questões relacionadas à saúde mental (e como isso pode demorar). Questões cotidianas que cada uma delas está passando mas que tem objetivo a ajuda mútua e a solidariedade, além de implicação política transversalizando essas conversas: quando juntamos mulheres para se fortalecerem em seus cotidianos e diante das opressões vividas fazemos política no melhor sentido da palavra: que nos remete a organizacao da pólis.
Ao final há uma troca solidária de roupas e objetos das mulheres que querem desapegar.
Uma segunda experiência igualmente potente é das Metzineres.
Você pode conhecer o projeto aqui: http://www.metzineres.org/index-es.html
Desde que sabia que viria para Barcelona estava tentando contato com elas até que recebi um convite aberto por facebook para conhecer o projeto onde elas apresentaram os dados do projeto e todo estudo sistemático que elas têm feito para conseguir financiamento e mostrar a importância desse tipo de iniciativa.
Pelo que pude entender, por que a palestra foi feita em Catalão 😲, um dos principais objetivos do projeto é diminuir a barreira de acesso às mulheres usuárias de drogas, pois entende-se que elas são invisibilizadas nos demais serviços e também nos movimentos sociais: não há espaço para mulheres usuárias de drogas nem mesmo no movimento feminista, pela dificuldade que a sociedade tem em pensar a questão das drogas que não seja por um paradigma moral.
Elas têm um slogan interessantíssimo: mulheres usam drogas, lidem com isso.
Outro ponto fundamental é a crença de que as mulheres são especialistas em suas próprias vidas e que as ações de redução de danos partem desse pressuposto fundamental.
Outros dois aspectos essenciais (e que apareceram tanto na Nikosia quanto nas Metzineres): projetos são autogestionários e pressupõem ativismo em movimentos sociais. No caso das Metzineres estimula-se a participação via ativismo nas políticas públicas e na discussão sobre políticas de drogas, além da inclusão em movimentos sociais, como no movimento feminista (e sabemos que há muitas vertentes dentro do movimento feminista, mas imagino que se trata de uma inserção crítica).
Há tantos pontos essenciais que não consigo nem mais nomear quais aspectos são mais necessários para pensar a potência desse coletivo, por isso vou colocar em tópicos o que pressupõe as Metzineres:
- Abordagem interseccional
- Pressupõe interdisciplinaridade
- Redução de danos em seu espectro completo
- Alianças com outros coletivos
- "Todo dia é um dia novo” e aqui é interessante por que subverte a lógica do "só por hoje".
- Terapias alternativas (É possível, por exemplo, uso de ibogaina ou maconha nas terapias alternativas)
- Pragmatismo na sistematização de pesquisas científicas e produção de dados (aqui ela dizem serem o foco do projeto: produzir evidências da necessidades delas existirem).
- Sala de consumo de drogas vigiado como modelo de prática comunitária.
Em relação à pesquisa que elas produzem queria fazer um parênteses:
Na apresentação que compareci no primeiro dia que conheci as Metzineres, elas apresentaram informações sobre padrão de consumo das mulheres atendidas e me chama a atenção positivamente o fato de haver uma coluna sobre consumo e outra sobre problemas relacionados.
Se observar o consumo da maconha, pro exemplo, 43 fazem consumo e apenas 4 relatam problemas relacionados.
Claro, diante do exposto, além da empolgação com esse tipo de experiência, pensei: como é possível que elas consigam produzir essas experiências, como a da sala de consumo e de terapias alternativas, se compararmos a nossa realidade brasileira é quase impossível de imaginar (ao menos não com essa gama de possibilidades, pois sabemos da competência e do esforço de muitos coletivos e projetos brasileiros de redução de danos, como o É de Lei! e da luta da RENFA - Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas).
Para quem não conhece esses coletivos:
Aqui em Barcelona o uso de drogas é despenalizado e, conforme me explicava Aura, aqui na Catalunha é diferente do restante da Espanha e um pouco mais progressista por conta de mudanças na legislação da região na década de 90. Tentaram fazer uma sala de uso vigiado em Madrid, mas não seguiu a diante, por exemplo.
Nesse sentido, DESCRIMINALIZAR o uso de drogas é fundamental para darmos passos mais largos em relação a redução de danos. E para isso, precisamos estar firmes no ativismo e inseridos nos movimentos sociais.
No caso da movimento da Reforma Psiquiátrica, observo que ainda há resistências e moralização em relação à discussão sobre uso de drogas. Não podemos cindir nem prescindir de nenhuma frente de luta pela autonomia da pessoas.
Deixo aqui um trecho do manifesto do coletivo Centelha, publicado pela N-1:
❝Eles quebram a força de produção de desabamentos na linguagem vinda das artes, calam todas as formas descontroladas do desejo, submetem a classe trabalhadora ao inferno da precarização e da espoliação neoliberal.
Tudo ao mesmo tempo, sem desdenhar de nenhuma frente de combate.
Por isso, todas as lutas – da autogestão das fábricas, da apropriação da terra à invenção e visibilidade da plasticidade da vida afetiva – são uma só, só podem ser uma só.
Não há nada subordinado aqui, nada é secundário.
Há conexões explosivas entre desejo, trabalho e linguagem que ainda não conhecemos❞.
Centelha (2019).


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